Ele se vira devagarzinho . Algo ou alguém o acordou. Olha para o sol e o torpor que normalmente acompanha seu acordar dissipa-se de forma instantânea.
- Meu Deus! É tarde!
Suas perninhas franzinas movem-se com uma agilidade insuspeitada para qualquer um que o visse. Devagar, para não chamar atenção de ninguém, esgueira-se entre as outras crianças adormecidas . Pronto: alcançou a rua. Põe-se a correr desembestado até que, arfante, estaca frente a vitrine de uma loja. Para então, embevecido, e fica observando uma mulher que, enquanto conversa de forma natural com alguém que ele não sabe quem é, vai levando à boca uma xícara de leite, às vezes um pedaço de um lindo pão como ele nunca viu igual, ou uma fruta. Ele fica ali, olhos esbugalhados, não perdendo nada do que estava sendo mostrado. Ao fim de algum tempo, a mulher levanta-se, sai da mesa, e o pequenino segue então o seu caminho.
Chegando a esquina, vê uma mulher com uma sacola enorme. Aproxima-se e diz:
- Moça, me arruma um real? Estou com fome.
A resposta vem rápida e ríspida:
- Sai pra lá, moleque.
Sai andando devagar, os olhos dissimulados olham minuciosamente tudo ao seu redor. De repente, acha o que procurava. Aproxima-se vagarosa e dissimuladamente da banca de frutas e, a um descuido do vendedor, apanha uma delas e sai correndo. Mal ouve os gritos de “pega ladrão!” que fazem coro à sua maratona matinal. Depois de correr alucinadamente, olha para trás e vê que driblou seu perseguidor. Senta-se calmamente, então, e põe-se a comer bem devagar a deliciosa fruta, enquanto pensa, com toda a sabedoria dos seu oito anos: Aquela dona da televisão tem toda razão. Fruta é a melhor coisa no café da manhã.
Foto: Ana Castro
17 comentários:
Bebida é água. Comida é pasto. Você tem sede de quê? Você tem fome de quê?
Desculpe, mas não resisti a transcrever essa parte da música dos Titãs. :o)
Como eu te disse em outra mensagem, seus textos são sempre escritos com o que você tem de mais significativo em sentimentos.
bjs
Lúcia,
Seus textos tocam lá no fundinho, emocionam.Eu adorei seu comentário, eu falo de mim, sou simples, não sei escrever coisas complicadas, sim, coisas da vida, do cotidiano. Obrigada pelo seu carinho, fiquei muito fez com seu comentário e visitinha.Beijos
Jorge:
E eu fiquei tentadissima a colocar Titãs, já que a pobre Xuxa caiu no ostracismo..rss.
Beijos
Sonia:
É sempre bom saber que meus textos emocionam, que levam a reflexão. Acho que é esse o objetivo de quem escreve, não é?
Novamente, parabéns pelo aniversário do blog. Beijos
Oi, Lúcia!
Seu texto me remeteu a um fato ocorrido nos anos 70, quando eu trabalhava no jornal Última Hora.
Um homem foi encontrado morto na estação rodoviária, que ficava ali, bem pertinho do jornal.
Após a investigação, descobriu-se que ele morreu de fome. Estava por ali, já a algum tempo, a pedir que lhe dessem dinheiro, ou lhe pagassem um prato de comida. A causa mortis foi devidamente comprovada pelo médico legista e o fato - chocante! - ocupou, à época, as páginas de alguns jornais.
Tratava-se de um homem. Agora, imagine quantas crianças passam por essa situação nesse wonderful world em que vivemos.
Adorei seu post! Um chamado poderoso à reflexão. Bjs, querida, e inté!
Pois é, Lúcia, não dá pra não ver, não sentir nem pra racionalizar, como fez a moça. Fome não podia existir pra ninguém.
Beijo pra você.
Oxente, você falou em fome, foi? kkkk Eu tô com uma fome retada e ai, cadê? Tem uma frutazinha para lá eu, tem?
Ave Cristo!kkkkkkkkkkkkkkkkkk
moça só quem passou ou passa por isso sabe o que é, ai minha infância, esse texto me remete para as pontes, para a maré, onde, nasci e me criei.
Lombringas, vermes, leptopirose... aiaiaia! kkk Rio para não chorar!
Mas, seu texto reflete o Brasil debaixo do tapete! Né não?
Muito bom texto moça!
Ao tudo e ao nada deixo uma poesia que talvez você já conheça, mas, nunca é tarde ser lida e tomara que seus leitores leiam também para ver o que a fome faz fia!
Valha-me Senhor do Bonfim!
João Palafitas
Acordou, escovou
os dentes com carvão,
olhou a mesa, pratos vazios...
Ruminou com os olhos a fome.
Abriu a janela, viu
um sol nascente mirrado,
mas que enche bocas vazias,
dependurado nos caibros...
Rogou aos céus!
Passou pó de pemba no peito,
colocou o patuá no pescoço,
fechou o corpo!
Apanhou o velho gereré,
chamou por Ogum de Ronda
e desceu para a maré.
Foi mariscar...
Papa-fumo,
canivete e rala-coco.
Siris magros,
caranguejos e aratus.
Não acreditou!
Passou as mãos nos olhos,
viu a fonte do seu alimento,
sem ao menos lhe darem
outro meio de sustento
aterrada pelo lixo
da noite para o dia!
Chorou nas mãos
toda a sua agonia...
Enquanto,
ratos, baratas e urubus
faziam a festa, sorriam!
Ainda restava
um penico de maré.
Não pensou duas vezes:
no gereré rasgado
deu algum nó
e pescou magros baiacus.
Tinha ali o seu pôr-do-sol!
Subiu as pontes,
passou no boteco,
cacete-armado de Tonho de Zene,
pediu uma e deu para os santos,
depois, tomou três poca-olho.
Saiu mambembe,
revirando os olhos, zarolho...
Chegou no barraco, sem tirar as tripas,
feliz, jogou na panela os baiacus!
Danação de fome... Aferventados,
encheu o prato, agradecido,
fez o sinal da cruz!
Chamou para dentro o alimento,
enganou ali todo o sofrimento...
Deitou, dormiu por breve momento,
sonhou com uma vida melhor,
com a primeira namorada,
como seriam os filhos ali
sem escolas, sem horizontes,
só lixos, ratos e baratas por todos os cantos
e nenhuma felicidade por encanto.
Bateu escuridão! Acordou,
com o serviço de alto falantes
São Lázaro tocando: “Eu não
tenho onde morar...”
Deu caruara, guenzo
correu para o penico,
o corpo trêmulo, suava!
Ainda tomou um chá de velame
para rebater o veneno dos baiacus
que lhe tinham saciado a fome.
Deu vexame!
Colocaram o corpo moribundo
no carrinho de mão,
correram pelas pontes
Santo Antonio e Copacabana
em busca de socorro.
Chamaram Dona Joana rezadeira.
Ela, com três galhos de guiné
e um dente de alho macho
rezou o corpo de João
pensando que era mal olhado...
Tarde demais!
João, ainda, semi-inconsciente,
Pensou em Gilda sua namorada,
no terreiro de Candomblé, era corujebó,
na roda de capoeira, nos pais,
nos amigos de infância,
no ano novo chegando,
na mesa farta que nunca teve
e em uma vida melhor com esperança.
Deu o último suspiro,
ficou tudo na lembrança...
Nas rodas de capoeiras
o luto dos beribaus,
nos terreiros,
o silêncio dos atabaques!
Nos barracos pendurados
um céu cinza nos olhares...
Deus sabe!
O Sibarita
Bjs
O Sibarita
Pois...minha querida Lucia,dá pena saber que há crianças com fome ( e adultos também) e tanto desperdício.
O seu texto emociona,faz-nos parar para pensar.Mas não podemos só pensar há que agir e tentar ajudar, como pudermos, a minimizar esses problemas que são de todos nós.
Beijinho carinhoso.
Ju:
Sempre me causa muito espanto a reação das pessoas quando um fato como o que você relatou, ou o que eu descrevi, vira noticia. Cria-se um clima da indignação geral que, infelizmente, não perdura por mais de 24 horas. Após isso, todos seguem vivendo suas confortáveis vidas e, pelo simples fato de terem se indignado, sentem-se cidadãos participantes, seres humanos piedosos. Triste, né? Mas real.
Beijos, querida.
Adelaide:
Não só fome não devia existir. Enfim, como existe, cabe a nós fazermos a nossa parte.Ainda que minima, perto de tanto que tem a ser feito, é melhor do que a inércia.
Beijos
Siba:
Nem sei o que te dizer, porque eu teorizo e me sinto indignada com a fome, enquanto você viveu na pele (e no estomago) tudo o que falei e muito, muito mais. Se há algo que eu possa te falar é: Sinto uma admiração imensa por você. Você é um sobrevivente, mas não um sobrevivente de corpo, só. Você não só não morreu de fome, como soube alimentar uma alma generosa, digna. Tenho um orgulho enorme de ser sua amiga.
Beijos, moço, e agora vou parar de escrever ou vou chorar mais ainda..rs.
Maripa:
Eu fico indignada com muitas coisas que vejo por aqui. Não sei como é no seu país, mas no mundo todo, pelo que a gente ve nos noticiarios, as coisas não são assim tão diferentes. Tento, como você disse, fazer a minha parte, mas gostaria muito de houvesse uma forma de sermos mais efetivos e de acabar de uma vez por todas com essa vergonha.
Beijos, querida.
Oi, Lu
Lindo e triste.
Essa é uma realidade do nosso dia a dia. Aqui em sampa, onde eu trabalho, vivem vários meninos de rua que dormem nas portas das lojas que exibem enormes Tvs de LCD.
um beijo pra ti
Pois é,né, a danada da fome,sem comentários.Bjsss Raimundo Pires
Etel:
É revoltante, né? Eu nem sei o que deve ser pior: o estomago doendo de fome ou a visão das coisas deliciosas e inacessiveis. É um casamento prá lá de devastador.
Beijos, linda
É, Rai, dizer o que, né? Qualquer coisa que se fale, é pouco.
Beijos
Um soco no estômago e a fina ironia. Captou muito bem esta tragédia urbana dos nossos dias, querida amiga.
A propósito, há muitos anos não ouvia falar de lombrigas.
Um beijo!
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