
Eu tive, como toda pessoa normal costuma ter, dois avôs; no meu caso, digo que tive aquele do tatu e aquele do poço ( lembram disso?). O meu avô “do poço” foi uma pessoa que, sem dúvida, teve um papel dos mais determinantes na minha infância, na minha vida. Tenho lembranças maravilhosas com ele, desde que me entendo por gente. A primeira delas é sobre uma caixinha. Isso mesmo, uma caixinha.
Meus avós moravam um tanto afastados dos meus pais e meu avô costumava percorrer o caminho de uma casa a outra de bicicleta. Para poder me transportar, já que eu não passava de um espirro de gente, ele construiu uma caixinha de madeira, a qual prendia na parte dianteira da bicicleta, e lá íamos nós. Ele ia assobiando músicas espanholas, as vezes as cantarolava, e eu, minúsculo pedaço de gente, ia batendo palmas e seguindo seu ritmo.
Depois eles se mudaram para São Paulo e eu passei a visitá-los de tempos em tempos. Na casa deles vivi dias maravilhosos, pois ela oferecia tudo o que uma menina sequiosa de aventuras poderia desejar. Foi lá que cai no poço, mas foi lá também que me descobri uma princesa, tendo por castelo uma imensa ameixeira e por carruagem um magnífico pé de goiaba.
Acho que foi lá, também, que foram plantadas em mim duas sementinhas que brotaram e fazem de mim a pessoa que sou hoje : a semente da leitura e a do fascínio pela História. Durante algum tempo meu avô foi sapateiro, e sua sapataria ficava num cômodo na parte da frente de sua casa. Eu passava horas a fio naquele local, junto com ele. Costumava me sentar no chão e ele me dava para “ler” um exemplar de Seleções. Eu começava, então, a inventar minhas histórias, e ele ia participando delas e as direcionando. Foi assim que fiquei conhecendo um homem mau chamado Hitler; foi lá, também, que tomei conhecimento das grandes guerras e da Revolução de 1932. Foi com ele que aprendi a pensar sobre os porquês de comportamentos humanos que mudaram todo o curso de vida de milhões de pessoas. E isso tudo feito assim, “lendo” Seleções.
Ah! O meu avô do poço era um homem de pouco estudo, mas de muita cultura. A medida que eu crescia ele lia comigo os gibis, assistia meu programa predileto: Pim pam pum; depois passamos a ler juntos os jornais. Quando entrei na faculdade ele quase enlouqueceu: era final da ditadura e ele usava de todo seu empenho para calar a neta que ele ensinara a pensar. Sobrevivemos a ditadura, ele e eu.
Ainda hoje, quando penso nele, vejo-me imersa num sentimento de bem estar. Não sei onde ele está, no momento. Se no céu, deve estar rodeado de anjinhos, instigando-os a questionarem as leis que regem o Paraíso. Pensar nisto me dá uma enorme vontade de sorrir, enche o meu peito de uma felicidade transbordante e me dá a certeza de que ele não deve se arrepender de nenhuma das histórias que me ensinou.